Thursday, January 29, 2009

Voltar para frente

A cabeça era o peso que modificava a forma original do travesseiro de penas de ganso do jovem que sobre ele pensava. Era seu hábito rotineiro deitar com o rosto sobre o travesseiro e refletir sobre o dia até o momento que não conseguia respirar mais. Era seu pequeno masoquismo noturno e matutino, o qual ele dava a razão de ainda estar vivo, pois, segundo ele, sem essas reflexões ele deixaria de ser ele mesmo; um amargurado.

Dia normal de terça-feira, do qual se reflete, se acorda, reclama do hálito, dos sonhos que teve dormindo, das dores de uma noite mal dormida, do café gelado de ontem que ele não se dá ao esforço de esquentar, só de reclamar. Já dentro do carro e com sua roupa social se prepara para mais um torturante dia de trabalho. Ele se depara todo o dia com a mesma questão: “Onde eu estava com a cabeça quando resolvi fazer psicologia? Talvez eu fosse mais feliz se tivesse continuado burro.”.

Fazia pouco tempo que ela tinha conseguido trabalho naquele posto de saúde público. O posto até que era grande, com muitas alas e quartos, mas ele fazia questão de se restringir somente a cozinha e sua sala. Ele já havia se conformado em morrer como funcionário público, já que não tinha mais clientes particulares, pois seu mau humor não fazia bem nem para as plantas harmonizadoras de ambiente que havia lá.

Justamente nessa terça-feira o dia começou com uma surpresa. E ele odiava isso. Porque tudo não podia ser milimetricamente calculável e previsível como ele fazia questão de ser a sua vida? O corredor que dava acesso para sua sala estava interditado de macas do ambulatório que estava sendo limpo. Ele então pegou o corredor de trás, que na verdade dava até um menor tempo para ele chegar à sua sala, mas como desde o primeiro dia era o outro que ia, era o outro que preferia. Quando chegou, outra surpresa; “sala fechada para dedetização”. Onde trabalharia? Foi direto conversar com a enfermeira e ela respondeu que daqui uma hora estaria liberada, para ele aguardar em algum lugar que logo lhe liberariam a sala de reuniões para os seus atendimentos.

O frustrado psicólogo, de cabelos não tão arrumados em comparação com o status que ela queria apresentar ao usar suas roupas sociais, sentou ao lado de um senhor que aparentava 60 anos;

-Bom dia, moço.

-Doutor, meu senhor.

-Tudo bem, mas não deixou de ser moço, tudo bem?

Ele jurou que se não fosse pela idade do vovô ele teria perdido já dois dentes. – --Tudo, tudo sim.

- Nunca o vi por aqui, é doutor de que?

-Psicólogo, senhor.

-Que ótimo, moço! Como é bom saber de tudo que nos pode levar à loucura, né? Assim você pode ser um louco consciente!

-A vida não é tão simples, senhor. Há coisas bem maiores e mais complicadas de se fazer do que ficar usufruindo da aposentadoria. Ele tinha total certeza que essas palavras deixariam o velho mudo por alguns momentos

-Para ser aposentado ter que ter trabalhado, ora. E o velho sorriu.

-Tem que ter sofrido.

-Sofrimento? Não! Você devia se envergonhar, moço! É tão novo, belo e cheio de saúde! Mas vejo que você tem uma doença incurável.

- Ah é? E qual seria? – O deboche tomara involuntariamente a voz do psicólogo, como um vovô doente poderia lhe dizer o que tem?

-Você tem sofrimento opcional.

-Oh, vejo que é um problema mental, então, né? E quem melhor que eu mesmo para saber disso?

-Alguém que em vez de reclamar do que conseguiu e lamentar pelos caminhos que decidiu não seguir no passado vive feliz por tudo que conseguiu e a ainda sabe sonhar.

Arrumar sua gravata foi a única saída que ele encontrou pra pensar na resposta que daria ao abusado velhinho que parecia querer lhe dar um ensinamento daquilo que ele era formado doutor. Ele até chegou a abrir a boca, mas o senhor puxou o fôlego primeiro e começou a falar:

-Veja como é fácil para todos nós se não conversássemos com qualquer pessoa. Ela passaria por nós e não se intrometeria com gente. Mas também não nos adcionaria qualquer coisa de bom em nós.

-Mas como sabemos se o que o outro tem a falar é bom ou ruim? –O psicólogo sem desejo de ter feito tal pergunta a fez. Ele se sentiu bem e mau ao mesmo tempo. Fazia tempo que não se deixava levar pelos impulsos naturais.

-Não sabemos, mas é essa a graça da vida! Se for bom, amém se for ruim é bom!

-Bom? Como o mal pode ser bom?

O velho riu. Não aquela risada de sarro pela ignorância do doutor que já estava arqueado em seu lado segurando o suporte de soro em meio aos dois para se equilibrar, mas pela satisfação de saber que falaria às frases que mais gostava de dizer:

-De tudo tiramos proveito, até da morte, moço. O lado bom e o lado ruim não estão na situação da sua vida, mas na interpretação que você dá a essa situação.

Como algo tão óbvio parecia tão profético para ele? O psicólogo ficou desconcertado. Mais que milesimamente o seu dia, a sua noite, as suas reflexões, a sua vida passou pela mente e ele percebeu o quão cinza era a imagem, o quão negro estava ficando a cada passo a sua vida e o quão colorido tudo estava ficando quando ele passou a se imaginar sorrindo em cada situação que passou. Ficou se imaginando dando bom dia para todos, dando risada do pneu furado, da criança querendo pegar sua gravata em uma consulta. Ele precisava fazer tudo de novo, tudo que fazia quando novo. Ele afrouxou a gravata no mesmo instante em que se lembrava que não era um ato burro ser psicólogo, era um ato nobre ouvir e ajudar a resolver problemas da vida. Lembrou de tudo e resolveu que por ontem, por hoje e amanhã que faria do positivismo, de início condicionado, pois a casca negra estava dura, seu parceiro.

-Senhor, o que senhor teve para ser assim?

-Tive não, tenho. E a vida me deu meios de ver o lado bom.

-Meios? Quais?

-Os caminhos, as ocasionais imprudências humanas, os out-doors, as pessoas e meu câncer.

1 comment:

  1. POH JERSO PERCEBI QUE CARA ANO QUE PASSA VC TAH ESCREVENDO MELHOR, BOM GOSTEI CARA UMA NARATIVA PERFEITA, CADA PESSOA PODER MUDAR TUDO QUE ELA ACHA DE RUIN. E ENCHEGAR QUE AS COISAS QUE ELA TEM E DAR VALOR NO QUE ELA É.
    BOM É
    ISSO AI MLK DOIDO
    É NÓIS MUITA CERVEJA SACANAGEM E SKATEBOARD
    ABRAÇOS

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